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SOBRE NABOS CRUS E PROFESSORES
Rubem Alves (maravilhoso)
"Àqueles que desejam conhecer os mistérios da universidade, morada de professores eruditos e pesquisadores rigorosos, o meu conselho é muito simples: deleitem-se com a leitura do livro Viagens de Gulliver, escrito por Jonathan Swift. Das inúmeras viagens desse notável navegador, a mais conhecida é a sua viagem a Lilipute, país de homens muito pequenos. Na verdade, viagens a países de homens pequenos há muito deixaram de ser tema de literatura, posto que os liliputianos se espalharam por todo o mundo e agora podem ser encontrados em qualquer lugar. Mas houve muitas outras, uma das mais fascinantes sendo a viagem de Gulliver ao país de Lagado, notável por suas universidades e instituições de pesquisa.
Muitas transformações aconteceram desde a primeira edição do dito livro, publicado pela primeira vez no ano de 1726. A ciência progrediu de forma fantástica. O que nos levaria a pensar que as universidades daquele tempo nada têm a ver com as universidades de hoje. Mas aquilo que Gulliver contou sobre as universidades de Lagado comprova, de forma cabal, que a despeito das enormes transformações acontecidas na ciência, houve algo que não mudou, que permaneceu igual: não mudaram as cabeças dos professores. Os professores de hoje agem e pensam do mesmo jeito que agiam e pensavam os professores de Lagado.
Fui informado, recentemente, da descoberta de um manuscrito de Jonathan Swift até então desconhecido, no qual ele relata sua visita ao Departamento de Arte Culinária do Instituto de Artes de uma das universidades do referido país. Se o meu leitor se espanta de que ali a arte culinária tivesse dignidade acadêmica, observo que eles estavam certos. Se existem em nossas universidades departamentos de música, a arte que dá prazer aos ouvidos, e departamentos de pintura e escultura, artes que dão prazer aos olhos, é natural que haja lugar acadêmico para a culinária, que é a arte que dá prazer à boca.
O curioso daquele departamento era a metodologia usada para introduzir os alunos à discriminação dos sabores, sensibilidade indispensável a todos os que pretendem se dedicar à produção dos prazeres da boca. Era uma metodologia rigorosa que afirmava ser indispensável começar pelo começo. A instauração dessa metodologia significou uma verdadeira revolução na arte de ensinar sabores. Porque anteriormente o referido departamento havia sido dominado pela metodologia oposta, que dizia que era necessário começar pelo fim. Durante esse período, os alunos aprendiam os sabores pela degustação de assados, ensopados, guisados, sopas, tortas, sobremesas, vinhos -- todos esses produtos que só se encontram ao fim da atividade. Mas os metodólogos novos alegaram logicamente que havia algo de errado nesse caminho. "Nenhum caminho começa pelo fim", eles disseram. "É preciso começar pelo começo, pelos fundamentais, pela coisa mesma, na sua condição original." Estabeleceram, então, que o curso de degustação consistiria de sessões de mastigação de alhos, cebolas, nabos, cenouras, rabanetes, mandiocas, bardanas, aipos, repolhos, couves ¿todos no seu estado original, crus, sem sal ou tempero, sem haver passado pela alquimia do fogo. Aos alunos eram servidas substanciais porções de todos esses vegetais, alegando-se que os temperos viriam em cursos mais avançados. Somente depois, seguindo-se uma rigorosa ordem cartesiana, eles seriam introduzidos aos produtos finais da culinária, quando então passariam a trabalhar com os fogões, os fornos e as grelhas. Cada coisa na ordem devida.
Infelizmente o departamento de arte culinária teve de ser fechado porque os alunos, a despeito de seus grandes esforços, não conseguiam passar da primeira lição, qual seja, a mastigação de alhos, cebolas. Nabos, cenouras, rabanetes, mandiocas etc. Não só isso. Essa primeira lição criava neles uma aversão generalizada pela comida. Houve mesmo casos de morte pela fome, pois os ex-alunos preferiam morrer a comer: a simples contemplação do prato, do garfo e da faca lhes produzia convulsões, desmaios e, em alguns casos, acessos de loucura.
Sempre pensei que esse relato fosse invenção de Jonathan Swift: eu não podia acreditar que houvesse professores assim tolos e loucos. Mas eu me enganei. Descobri que a mesma metodologia continua a ser usada.
Percebi isso ao observar uma jovem "mastigando" o primeiro "prato" que lhe dera o professor, texto que os alunos recém-ingressos na universidade teriam de ler: o seu rosto apresentava aspecto idêntico ao rosto dos alunos de Lagado, diante daquilo que obrigados a comer: um ar de espanto, de estupidez, de horror, de desespero mesmo. A alegria que se vira nele desde a notícia de haver passado no vestibular desaparecera. Passei os olhos no texto e logo entendi. Amostra: um único parágrafo continha referências a Weber, Kant, Hegel e Marx, sem nenhuma explicação, como se o leitor já soubesse de tudo, e pelo texto se encontravam espalhadas palavras em alemão como Staatshilfe, Herrenvolk, Realpolitik, Wirklichkeit, entre outras, traduzidas, é bem verdade. O esnobismo dos intelectuais não tem fim. Não foi o texto que me espantou. O texto, horroroso do ponto de vista literário, correspondia ao gosto que a educação universitária desenvolve: a erudição se revela pela capacidade de escrever feio. Os eruditos se deleitam com o feio e confuso e suspeitam do simples e belo. O que me espantou foi que o professor tivesse escolhido precisamente esse texto como o texto por meio do qual os alunos seriam iniciados na sua ciência. Lembro-me de um professor assim que afirmava: "Não me abaixo ao nível dos alunos. São os alunos que devem subir ao meu nível." Agora imaginem um professor de salto em altura que colocasse o sarrafo na marca dos 2 metros e não o baixasse dali. É claro que os alunos logo desistiriam daquela modalidade de esporte e iriam se dedicar a outras coisas. Asseguro que os alunos do tal professor já começaram a desenvolver ódio pela sua disciplina. Não pela disciplina, mas pelo professor também. Porque, de saída, eles já perceberam uma coisa: o tal professor não se interessa e nada sabe sobre a arte de ensinar. E o pior: além da leitura irritante (Deveria haver um texto com os "Direitos dos Alunos". Um deles rezaria: "Ninguém será obrigado a ler um texto que não entende"), o professor exigiu que os alunos fizessem o horror dos horrores: que resumissem o texto. Ler um texto para fazer resumo: é difícil imaginar algo mais deseducativo.
A escolha do professor revelou a sua alma. Cada vez eu mais me convenço: muitos professores são movidos pelo ódio aos estudantes. O seu objetivo não é ensinar e conduzir, mas confundir e fazer sofrer, virtudes de torturadores.
Podem me acusar de ingênuo e romântico: afirmo que a renovação da educação terá que passar pela transformação afetiva dos professores. A primeira pergunta que se deveria fazer a alguém que se candidatasse a uma posição de professor deveria ser: "O senhor gosta dos alunos?" Caso a resposta fosse afirmativa, a segunda pergunta se seguiria: "E qual é o primeiro prato que o senhor lhes serve? E se ele responder que é mandioca e nabos crus, sem tempero, ele ganha logo um emprego na universidade de Lagado."